Continuo sem entender muito. E os dias somente parecem acumular mais peças deste estranho quebra-cabeça. Não tenho conseguido unir muitas delas. Há uma montanha de elementos aleatórios, um complexo sem unidade. Uma cidade-multidão se descortina com sua minhoca de ferro por dentro da terra. Estamos dentro da sua estrutura, talvez tenhamos sido transformados em aço, respirando sua umidade de fungos e ouvindo o seu assovio ácido enquanto recebemos mais notícias amargas sobre a violência, que acaba de atingir um amigo. Saramago não traduz melhor o que se passa, apenas torna-se um companheiro neste estranho caminhar. Tentamos compreender o que parece sem razão, como Caim, andarilho no velho mundo, buscando alguma lógica dentro do absurdo – conclui não haver. Ouço a voz de um amigo do outro lado da linha. A morte das centenas de meninos das favelas no Brasil é real, assim como a morte dos haitianos, porém ainda não tão tangível como aquela que toca o corpo de um ser em nós vivo pela força da afetividade. E a retórica some. Ainda ontem folheei Arendt numa estante e optei por não lê-la, na ilusão de estar em férias da violência. Antes disso Haiti já havia interrompido nosso sabat como óculos a descortinar não apenas o que há de anunciação para as catástrofes naturais por vir, mas como extrema miséria da humanidade inteira – não como exceção, mas como permanente realidade entre nós. Hoje, novamente, uma gotinha de sangue cai no colo. E quando ela aparece, na sua verdade de pele nua e crua, nada vem de Saramago, de Arendt, de Baratta, de Foucault, de Karam, de Soares a tornar mais fácil o percurso. A dor vence. O vazio. O silêncio. Apenas permanece uma vontade de abraçar e acolher o frágil corpo humano vilipendiado. O que será feito de tu, Caim, quando findar seu eterno percurso e suas coerentes indagações? E por que ainda esta sede de viver e escrever e fazer cinema e amar e viajar e correr e parar respirar sorrir e viver? E esta absurda e concreta força para querer poder contribuir para transformar o mundo, a cada dia, nos pequenos e necessários atos, buscando em Drummond o Tumulto capaz de escrever na pedra o que deve sobreviver e fazer-nos respirar.
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