domingo, 25 de maio de 2008



Rosas e ramos

A literatura como abrigo para a falta de sentido, se a penso como uma escolha, pergunto-me, quem terá eleito, o ser a ela ou ela ao ser. Ela que, vagando feito alma penada na penumbra do cosmo, pressente, abarca e abriga vultos e sopros de não ou o escafandrista que, submerso no mais profundo mar de si mesmo, nada em busca de nada. A literatura como meio primário de existir, como método de fazer firmar o firmamento em ponto fixo do caos, como lupa, luneta, telescópio, microscópio, instrumento de fazer ver para além do visto. Um percurso de terra vermelha que faz o calo do pé doer, mas é de terra, veja bem, é de terra. E vermelha. Feito uma veia, um rio de sangue. Há vegetação de caatinga nas bordas, e um corpo de gente, branco ou preto, que bóia no fluxo do líquido rubro, conduzido ao mar porque não há nada melhor para se fazer neste fim de dia, neste fim de tarde de sol, neste fim de mundo, neste fim de vida escaldante (sangue e sal que se encontram, ao final). O nordeste é sempre melhor do que o sudeste porque faz delirar. No asfalto, pulgões, lesmas, bernes, vermes, presos em engarrafamentos, criam um vocabulário de neuroses, não de delírios. A literatura talvez salve algumas rosas gracilianas e alguns ramos de guimarães, e os levem de volta para casa.
[e por falar em rosas, devo confessar que um ser visitou-me em sonho, noite passada. tinha aspecto floral, um híbrido de margarida com girassol, mas era vermelha. pareceu-me confiável porque disse, sem pestanejar, habitar o asteróide B 612, portanto o mesmo do pequeno príncipe - só podia ser a rosa disfarçada. confessou-me, num suspiro lírico, tão lírico como jamais sentido na estrutura fônica do planeta Terra, que é possível que haja, ainda, salvação para os mamíferos, desde que deixem seus irmãos, mamíferos, viverem em paz (aqui não falava só de gente, mas também de boi, vaca e todos os demais seres que têm mamas). citou Nietzsche, ao que perguntei como tomou conhecimento deste filósofo terráqueo, e me respondeu ter um livreiro viajante deixado com ela uma edição deste autor, sentenciando: o problema do humano é ser demasiado humano.]

domingo, 11 de maio de 2008


'desvio para o vermelho'



quinta-feira, 1 de maio de 2008






Cogito


A existência de um ser criador do mundo impõe o tempo como marco de fundamento de algo no espaço. Antes, apenas o nada. E deus. Um homem está à frente, encostado na pilastra com a perna dobrada em quatro, deixando ver, num quadro recortado em triângulo, uma flor lilás emoldurada pelas suas pernas. Mas se sempre existiu deus, o nada não existe. Ele olhava em direção ao céu, desligado do corredor, com os lábios entreabertos, como se gesticulasse palavras, tendo em uma das mãos uma maça mordida e na outra, um livro de capa laranja de onde era possível à mulher ler, dobrando ligeiramente a cabeça, 'Fenomenologia da percepção'. Sempre houve, então, ao menos um elemento, o que nega o início e impõe a eternidade, uma vez que a idéia de deus traz em si a concepção de ser atemporal. O movimento lento de uma mecha dos longos cabelos do homem trazida ao seu nariz o fez espirrar, expulsando pingos de saliva sentidos no braço direito da mulher. Se há eternidade, dentro da qual deus sempre existiu, já existia alguma dimensão existencial, dentro da qual o próprio deus existia e que, portanto, não foi por ele mesmo criado, já que ele já é dentro da própria eternidade. Ela seguiu em frente sem olhar para o lado para não ter suas reflexões interrompidas, mas ouviu o homem chamar-lhe pelo nome, o que a fez ditar rápido a cadeia seguinte da análise, para não perdê-la por aquela interrupção. Deus, portanto, não existe como conceito criador primário-absoluto. Há alguma dimensão de existência – mesmo a existência de um grande vácuo cheio de nada (o nada que é deus, já que este para sempre existiu), porque numa construção lógica a existência de um deus eterno nega por princípio um marco de criação do mundo. Ela olhou para trás, viu sua mão balançar na altura da cabeça em direção ao homem, estranhou o próprio movimento e retornou o corpo em direção ao corredor do campus, que continuava longo e, agora, deserto, à sua frente. Mas o marco da criação de deus não é a criação de algo (aqui entendido como qualquer coisa para além de si) num sentido lato, porque algo já existia e se confirmava na percepção de deus enquanto elemento primário – deus é existente[?]. Assustou-se com um grito atrás de si e olhou automaticamente para o homem que agora estava no centro do campo de visão da mulher e dava passos em sua direção. Assim, o marco da criação de deus não é a criação do espaço, mas sim a criação de 'coisas' no mundo (considerando que o único elemento que existia era deus e este deve ser entendido como ser-não-matéria (por quê?). Ele tinha um corpo engraçado, agora, visto em trânsito, com um peitoral de primata musculoso. Não existia 'coisa' antes da invenção de deus? Ele mordeu a maçã enquanto caminhava e no ato da mordida fechou os olhos, abrindo-os em seguida, juntamente com um sorriso que se embaralhava com os movimentos de mastigação. Além-de-deus não existia nada no mundo? O homem tomava uma forma mais volumosa a cada passo, e mais colorida. Somente é concebível um deus criador se este inventa algo que não existia fora dele, independente dele, exterior a ele. A mulher não queria sair de si e fechou os olhos. Mas este princípio é também incoerente, porque a criação é necessariamente parte do criador e, portanto, já existe em si, mesmo que ainda não fora-de-si. Sentiu, abruptamente, uma sensação de calor tomar-lhe a mão. E se já existia em qualquer-que-seja o plano, não foi criado, mas exposto, materializado, consubstanciado.
“_Mas, o que é primeiro? É possível criar do nada?”
“_ O quê, Thaís?”
“_A criação já parte de um princípio já criado, deus?”
“_Hã?”
“_O que vem a partir dele surge da sua Idéia, do Verbo?”
“_...?!”
“_O Verbo imagem, o Verbo pensamento, o Verbo conceito, o Verbo a-matéria?”
“_Thaíis?”
“_O Verbo pode parir pedra?”
“_Tha-ís”
“_O Verbo pode parir barro?”
“_Você pirou.”
“_O verbo pode parir peixe?”