terça-feira, 27 de junho de 2006



Eu destacaria as cores e o silêncio... 





"Tu, mulher olhando o seu corpo como coisa distinta, como seu próprio objeto erótico, e não como seu eu (porque toda a sobrevivência da cidade assenta nessa prática, do corpo se retirou a mulher para que aquele possa ser usado e explorado sem resistência pessoal).
As mulheres regressam da sua longa hibernação sexual, mas ainda não habitam seu corpo, olham-no, falam dele como dum animal de muita estimação."
Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa.


quinta-feira, 15 de junho de 2006




Meninas

Chuva late e Pedro olha pela janela do segundo andar. É Sofia que chega com Eleonora. Sofia vem à frente. É possível ficar ali filmando sua passagem pela existência. Acha-a linda e cheia de si, sempre. Queria mesmo tê-la, com todo aquele preenchimento, aquela vivacidade, aquela cor que lambuza o dia branco de chocolate. Ela está sempre de saias longas e camisetas sem sutiã e é admirável este seu desprendimento que vem mesmo da revolução feminista e está ali nela incorporada. Voz grave, mas cheia de aconchego que faz qualquer discussão filosófica parecer sempre uma conversa de bar. Eleonora entra como sempre, já cheia de intimidade e sem bater na porta. Ela o agarra pela cintura, gargalhando e balançando o quadril com uma música que exala inteira do seu corpo, dança com sua roupa e seus pés esparramados em sandálias de couro cru. Admira quase tudo nela: o jeito como se relaciona com o mundo, a sua disponibilidade para acontecimentos inusitados e a sua opção por estudar História.

Pedro anda para o quarto trocar de roupa e atrás lhe seguem as duas. Sente atrás de si a respiração de Eleonora, que vem trazendo o corpo quente para perto do seu, com sua pele eriçada. Sente que um sinal seria suficiente para uma brincadeira a três. Admira o desprendimento delas, a disponibilidade descompromissada, a abertura para as múltiplas possibilidades e a simplicidade com que tudo se resolve depois. Pensa que retém o pior peso, que é o do sentimento, esta mania de ter sempre o amor no meio, estragando tudo, mutilando o desejo, limitando o lúdico. O corpo santo, o corpo como território sagrado, o corpo como pecado original, está farto deste peso transcendental, quer mesmo estar disponível para o abismo. Sabe que nelas não existe esta carga, que elas realizam seus pequenos delírios sem peso, sem dor, então o travamento é seu e é possível romper. Ir além, sim, mas hoje está com preguiça de enfrentar seus fantasmas – prefere ficar do lado de cá, onde ainda é possível saber como agir. Entra no quarto e com ele seguem as meninas, cantarolantes. 


quarta-feira, 14 de junho de 2006




Atravesso a rua pelo ar, em pensamento e assusta-me já ter chegado aqui. Como atravessei tantas ruas sem me dar conta? Lembro-me apenas de um olhar questionando-me na Afonso Pena e não sei o sentido da pergunta. Sou tão estranha assim? Estranho para mim é uma existência barulhenta. Apesar deste corpo que me belisca todos os dias. E há mesmo dias que preferia não ser, mas já não há esta possibilidade, então talvez por isso queira tanto derreter-me em leituras. Uma cadeira range no andar de baixo e me irrita profundamente, me irrita profundamente ser quebrada quando flutuo em ondas. Há dias uma náusea me entristece e sei que preciso parir este sentimento. Oscilo entre linhas tão contrárias que às vezes temo. Às vezes o medo da morte me assusta, não pela sua existência, mas pela minha não-existência. A morte é mais real, hoje. É preciso ser fundamental, creio, mas não sei mesmo o que é ser fundamento de qualquer coisa, então não há muita saída. Deixamos de ser fundamentais quando deus morre, para sermos uma florzinha que curte um banho de sol. E há mais responsabilidade agora, porque a solidão é cruel, mas deliciosa. Esta náusea existencial, ela sim é fundamental. Eu não. E onde está a responsabilidade? De qual ordem ela provém? Por que esta dor por toda dor que há no mundo? Não basta explodir com isso em mim? Ser, simplesmente um fluxo atemporal e imemorial... Aderir ao ‘movimento concepcionista’, talvez (risos)...