sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

32 de dezembro.


esse número existe e será amanhã. 11.732 dias do nascimento da mulher que na ocasião estará sentada diante de um computador ainda divagando sobre os rituais de passagem, como aderir a uma coletividade, ter um filho, romper com um amor dilacerante, abandonar um caminho, instaurar outro... e uma chuva rala arrasta o que resta do trecentésimo sexagésimo quinto dia, ainda sonolento, para dentro do bUeiro. somente a artesã está acordada e o tece nublado, capaz de recompor a febre da humanidade, antes dela cair novamente na noite. firmado com a cristalidade de uma gota, o dia cai da árvore e embaça os óculos do homem melancólico que passa com as mãos para trás, embaça as luzes amarelas do poste, deixa demorar mais as casas em cuspir as suas veias para a rua. falas de desapego? não estás aqui por afeto, mas jogado à mercê do tempo e uma curva mal inclinada no asfalto é capaz de lançá-lo no fundo do vale, assim, como se não houvesse uma festa bonita preparada para você à beira do mar, então dirija devagar. mas ainda que esteja viva, o mar não terá o privilégio dos pés da mulher-que-escreve quando perceber o último fotão de luz do femtosegundo sobre o qual reside o fim do ano. nesse instante sagrado estará ela, a mulher-que-escreve o dia nublado, dando de comer ao cão do seu vizinho, no fundo do quintal, porque ele viajou e a deixou nesta obrigação, cumprida com gosto por quem não se importa, apenas se lembra, de ser este um dia sagrado para os de fora de si. ela olhará para o céu e ele terá algumas estrelas à vista, apesar das densas e possíveis chuventes nimbostratus. então ela abandonará o quintal, o cachorro, as estrelas e correrá para o computador. faça-se chuva! e a chuva será feita.

"eu escrevo a meia noite porque sou escuro"(c.l.)


terça-feira, 28 de dezembro de 2010

janeiro


o mundo, um grão. gigante é o corpo e tudo o que cabe nele além dos seus cabelos. de repente tudo parou de doer e só ficou de você este olhar projetado sobre uma viagem que faça rodar o mundo e as pessoas num reordenamento de territórios e liguagem. é apenas simbólico, sim, é apenas simbólico o seu jeito de olhar, o seu jeito de tocar, o seu jeito de projetar o corpo enquanto pensa a próxima frase, mas por favor, respire antes, respire...
você cuidou da dor, mas a carne mais se feriu. o que dói ainda agora é a certeza de mil sonhos e ainda a espera pelo trampolim. há circularidade no mundo e ela se manifesta dentro da sua cabeça, recorrência de desejo e vazio, como uma criança na montanha russa, como um erre sem fim. resta pouco tempo para tudo, mas ainda é suficiente o (tempo) que resta, então corra (lola) corra., todo o novo já está velho porque o que se busca não é o que se afirma não nascido, mas algo já sabido, simples e mil vezes pronunciado. chão rochoso. o céu desaba em azul na sua cabeça. você molhou a flor, mas ela nasceu morta. e o azul não a agrada, não significa nada, te prostra na espera por morfeu. pós tropicalismo. o que há depois de glauber, o que há depois de varda? o ciclo se fecha, o ciclo se abre. você se empenha em ser melhor, mas o melhor parece atrás, um sonho infantil esquecido na bolsa amarela, na ilha perdida, nos escravos de jó, na boneca de pano, no elefantinho amarelo. queria o mar, mas os de janeiro não, de bichos estranhos de branco, vaidades e transcendências. admirável mundo novo, laranja mecância, planeta dos macacos. tudo parece atulhado, atormento, som de acufeno. buscar o seu lugar no centro do que não, numa fenda. admitir o máximo de covardia e coragem para fazer parir o seu novo. janeiro disse que já chegou em mim.

domingo, 26 de dezembro de 2010

ode à menina do rio


amanheço

invadida com o pensar numa forma.
os seus escritos,
quase lidos por sua voz - silenciosa
depois de navegadas
as palavras
no leito do rio,
passam feito água em curso
derramadas em ser tão.


que bom seria se.
pequena visita -
compartilhar leituras,
textos íntimos,
chá de maça com canela,
banalidades...

guardo-a em mim.
amiga distante
de uma rara fidelidade
eleita na dimensão sacroprofana
da literatura.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

sinal dos tempos

(foto por tcheus)

dias de inferno. o calor parece com as sensações internas - queima, fere, maltrata ou torna os sentimentos mais passionais, quase fatais. nesses dias pode cometer loucuras como escrever nas paredes internas do quarto, inteiras do corredor, acabar com a caixa dágua (crime ecológico bárbaro - urbanidade seca sedenta de rio), quebrar o asfalto a machadadas pra deixar a terra absorver um pouco do sol ou assaltar um picoleiro pra mastigar gelo até a noite resolver fazer sumir o fogo. "me vê dez de coco queimado". ô vontade de
oceano agora no corpo, com o olhar fixado num asteróide gordo... mas o mar em janeiro assusta de multidão. ficará em casa bem perto das macieiras, agregar amigos e oxalá criar uma sombra, colher uma brisa, molhar o terreiro, brotar uns sonhos. melancia, hum... de tanto andar, de tanto amar, a pele sua, a nuca se molha. os corpos nus que, raros, transpiram, agora se afogam no chuveiro. verão é tempo de amor de ducha. tira as panelas das grades, esvazia a geladeira e senta dentro. puxa e fecha a porta, encolhendo o joelho. posição de triste. só é possível pensar direito com a carne fresca.


sábado, 4 de dezembro de 2010

LAISSEZ-FAIRE



Enquanto isso, a retomada de território sacramenta o maniqueísmo e atesta o gozo coletivo alheio aos poréns que antes de serem pessimistas, problematizam o ego nefasto da violência. O problema não é apenas querer interromper uma ordem destoante e violenta presente nas favelas, mas impor uma falsa idéia de que uma ordem destoante e violenta será interrompida, quando se sabe que apenas recomposta, como peças num jogo de xadrez, porém dessa vez institucionalizada. Violência e injustiça social não se cura com a produção de uma guerra. Foram presos a irmã, o cunhado, o sobrinho, o bisavô e o papagaio. Nesse ritmo, rapidamente nos igualamos aos EUA, país que mais encarcera no mundo, hoje. Qual o problema, perguntarão alguns, "pois que seja!" O problema, cara pálida, é que a proporção do aumento do encarceramento no Brasil, a cada ano, nos leva a crer que teremos em 10, 20 anos mais da metade da população do país encarcerada, uma vez que a resposta que se busca para todos os problemas sociais passou a ser a criminalização e o encarceramento - tudo aquilo que um grupo considera inconcebível (mais pela suas fortes tendências de moralismo exarcebado e intolância do que por sentimento de justiça e busca real de solução), se propõe uma lei penal capaz de (falsa, burra, cega e hipocritamente) conter o infortúnio; o custo disso?: para abrir uma vaga de prisão o estado gasta cerca de 15 mil reais e para manter uma pessoa encarcerada, 1.500, 2.000 reais por mês (quando falamos de um menor infrator, esse valor chega a 5.000). Enquanto isso muitas vozes gritam ser um absurdo qualquer programa social de distribuição de renda, sob o argumento de que 200, 300 reais por mês para famílias em situação de miséria, são mecanismos assistencialistas incompatíveis com o laissez-faire (a velha máxima egoística e cínica do peixe versus anzol). Aqui não busco identificar o problema da violência urbana meramente como fenômeno a ser resolvido a partir de políticas de cunho assistencialistas. O erro primordial, relativamente a esta temática, foi de se ter desconsiderado o fenômeno da violência urbana como algo a ser pensado a partir de políticas de segurança pública de cunho emancipatório, inclusivo e participativo, deixando a construção de solução às forças mais sectárias da sociedade. O resultado foi e tem sido a perpetuação de respostas cada vez mais repressivas, violentas, estigmatizantes, enfurecidas, excludentes, numa circularidade sem fim. Sabemos que a causa da violência não é a índole para o mal, e sequer podemos impor esse sintoma como advindo do estado de pobreza dos grupos que a sofrem, mas sim, está relacionado ao grau de desigualdade social a que a população desse país sempre esteve exposto. É surreal depositarem todo o caos que se vê na tv ao tráfico de drogas. E afinal aonde está o mercado consumidor, que não se manifesta? Nessa hora somente a cara do noiado de crack, novamente o menino negro da favela, aparece estampado como vítima do mal. Também impossível é visitar um cárcere sem concluir que este se tornou o pelourinho pós Lei Áurea. Mas... de onde vem tanta arma encontrada nas favelas? Como chegaram ali? Quem as disponibilizou? Quem produz arma e quem ganha com uma guerra? Para nos convencer da salvação, testemunhas da violência do tráfico são apresentadas com lágrimas na sua primeira infância - agora, com a presença das forças de segurança na rua, é possível voltar a sorrir. Enfim um paraíso se apresenta. É o fim do medo, é o sinal dos (bons) tempos. E os ecos já se fazem sentir em outras cidades, o clamor pela solução total, como se uma vacina houvesse sido milagrosamente criada para nos salvar dos "marginais".
E você está preso à tv. Dessa vez vai! Só restam dois anos para a Copa. O espetáculo deve ser bonito, com direito ao turimo no morro, à vista privilegiada do cristo redentor.


"Segundo a investigadora Vera Malaguti,
o inimigo público número um está sendo
esculpido tendo por modelo o rapaz bisneto de escravos,
que vive nas favelas, não sabe ler,
adora música funk, consome drogas ou vive delas,
é arrogante e agressivo,
e não mostra o menor sinal de resignação"
(Eduardo Galeano, De pernas para o ar:
a escola do mundo ao avesso).