domingo, 27 de fevereiro de 2011

03 de julho

Ele apagou a luz, às seis da manhã e fechou a porta, despedindo-se da sua vida. Sobre a mesa, um recadinho. “Presente! Beijo.” Um caderno de anotações dos mais belos que ela já teve. Quais palavras o preencherão? Poderia começar por estas, mas não ousa, ainda, rabiscá-lo. O quer virgem, por uns tempos, distante do inevitável texto.

Ela chegou de Fortaleza depois de uma viagem bela e cansativa, de cinco dias. Por ter viajado por toda a noite, estava sonolenta e no momento em que ele também chegou, à noite, vindo de um trabalho em São Paulo, a encontrou deitada. O beijo foi frio, como já o era por tantas vezes neste último ano. Estava distante e preocupado, por ter que no próximo dia cedo, seguir para nova viagem. Imediatamente, pôs-se a arrumar a mala, enquanto ela, deitada na cama, acompanhava-o com os olhos. Ele falou do sucesso da reunião daquele dia. Ela discorreu rapidamente sobre o congresso e expôs o que era para si a grande novidade, uma nova proposta de trabalho. Ele ouviu sem reação, mas ela sentiu pelos suspiros que ele balbuciou, seu incômodo com a possível confirmação deste fantasma que os assombravam. A reação dele a fez dizer num tom suave, do egoísmo nele por não demonstrar contentamento com o caminho que poderia se abrir para ela. Apenas já não é novidade tal possibilidade, uma vez que já conversamos sobre isso inúmeras vezes, disse ele e se deitou ao lado dela.

- Raiva não. Estou pensativa e reticente.

- O mundo inteiro sabe que esta será a última noite que dormiremos juntos.

Esta frase instaurou a certeza e o silêncio. Neles, um misto de cansaço e dor. O fim, já tão evidente e discutido, tomava assento.

- É difícil acabar sem culpar o outro. Findar com acusações é mais fácil, torna mais confortável e compreensível o rompimento - Falava isso enquanto tentava compreender quem deles era o responsável, segurando um ímpeto de culpabilizá-lo.

- De fato, eu não te culpo. É o que é. Insisti até aqui por ser você. Estiquei a corda até onde era possível. Já não é mais. Uma pena, porque você é muito para mim.

O sexo foi lento e doce. Ela chorava enquanto ele lhe percorria a pele. Cada ato era sentido como último e isso os faziam perder, por vezes, o ritmo. No gozo, ela soluçou entre lágrimas. Ele a abraçou.

Ela agradecia, em silêncio, o fim, pelo formato que assumia. Poder encontrar o mesmo amante do início, ao final, era uma sensação rara, poucas vezes degustada. Dormiram abraçados.

- Sentirei falta de muitos momentos, disse ele. Mas sei do que mais sentirei falta. Das suas mãos.

Ela sorriu, ainda em lágrimas e manteve seus dedos nos olhos dele.

O despertador tocou às cinco. Antes dele sair para nova viagem, veio até a cama, abraçando e beijando-a.

- Eu não quero me despedir de você.

Ele saiu do quarto, caminhou em direção à porta, apagou a luz da sala e, antes de fechá-la, deixou sobre a mesa um recadinho. “Presente! Beijo.” Um caderno de anotações dos mais belos que ela já teve - ainda virgem, como se a história a ser escrita já tivesse perdido o sentido ou não houvesse palavra capaz de pronunciá-la.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

egolatrias

há falta do outro dialético, do pólo que intermedeia, da voz silenciosa que atiça. o movimento é circular, em rede, não se conforma na solidão, busca um ponto ativo, uma voz no outro, do outro, para o outro. e há um mundo já constituído, em ti, que me chega com a complexidade necessária para que o tumulto se firme produtor de frases. há o desenho de um cenário que te tem por personagem, que me chegou vagamente até confirmar-se ao te conhecer. o cenário tem minha cidade, minha solidão nela, a música na solidão da cidade carregada de afetos, amores perdidos, refeitos, esticados, revividos. você é uma representação, um ser único e milenar. o reflexo de muitas buscas, encontros e desencontros. não haverá encontro e ponto. não haverá. minha palavra cessará, a sua também, permaneceremos, nem sei se meu olhar terá o seu, nem sei. não será em vão o que foi provocado. o sentimento mantém a energia ativa, mantém a pele viva, mantém, no cotidiano, a perspectiva e a perplexidade com tudo o que não inspire arte... começo a entender... "um pensamento desejante, movido por uma atenção plural e proliferante; uma estratégia do espanto; finalmente, algo propriamente corrosivo." percebo mutações ao ler, mas ainda não as apreendo, preciso de mais tempo para captar a forma, sutilmente, como quem diferencia pontos luminosos na noite. é preciso reconhecer o brilho, diferenciar a intensidade dos tons, a distância da luz... diz da liberdade, do desapego, do vácuo... serão sinônimos? a grande questão existencial, para mim essencialmente literária, é aprender a desprender-se, um desprendimento que requer reconstrução, refundação, renascimento. não sei o porquê da existência, às vezes me parece um equívoco, às vezes uma embriaguês, noutras se enche de sentido,... a carência de sentido como uma das mais belas descobertas, porque firmada em lápis de cor, pronta a constituir vida. a filosofia ensinando a desmantelar castelos. sobra uma praia cheia de areia. isso pode ser tudo, isso pode ser nada. parir significado a tudo, o tempo todo, dói. dói ser inteiramente responsável pela existência inteira, pelo mundo inteiro, por tudo que vejo, por tudo que toco, por tudo que falo, dói perceber a pulsação da vida em cada poro, em cada átomo, sentir o coração bater, a língua salivar, o olho lacrimejar, o amor nascer, o ruído da cidade, a intensidade da luz, a dor do outro, minhas limitações infinitas, minhas múltiplas possibilidades, minha finitude, tudo o que não serei, o quanto me iludo com minha frágil experiência... o movimento exige minha postura, minha palavra, meu ato, minha disposição, e eu quero parar, deitar-me na areia e contemplar o céu azul estático, a montanha que aparentemente não se move, a nuvem que segue vagarosa, eu quero menos barulho, mais delicadeza. uma música, elomar, uma música.

entrelinhas

- trabalhando muito.
- imagino.
- era uma pergunta.
- então a resposta poderia ser: imagine. muito, sim. mas também outras coisa bacanas. espero que estejas bem.
- com uma gripe aqui. vim tocar e acabei por pegar essa coisa nesse frio daqui...
- bonito aí?
- sim, muito. mas o frio determina mais que o desejado...
-
líquidos quentes para aquecer o corpo.
- já bem chá-qualhado, de tanto que aqui consomem...
- não te interrompo, mas dizer pouco não será mais que o silêncio?
- temo deixar-me conduzir por essas linhas... você sempre prefere uma xícara de chá às nossas conversas. (isso também foi uma provocação!)
- para não ter que engolir tantas verdades.
- posso ser qualquer coisa de fogo, agora. menos cabelos...
- ...
- verdades com chá descem melhor!
- se passar uma geléia e manteiga nelas, acredito que sim.
- qual estação é aí, agora?
- aqui chove. início do inverno... mas ninguém me falou de outono.
- somente as folhas dum parque que passei com meu amigo.
- sobre quais verdades diz?
- as de que são mentira.
- enigmas...
- de que prefiro as xícaras de chá a uma boa conversa com uma certa pessoa.
- e porque posso me dar o direito de sentir-me magoada contigo? por que separado: trata-se de uma pergunta. mas sem intenção de resposta. a pergunta é para mim mesma.
- as pessoas são como espelhos... às vezes...
- então por que senti aquilo que nunca provoquei em ti?
- espelhos às vezes concavos, às vezes convexos...
- sim...
- nem sempre me vejo nele... as vezes minha imagem some, quando te olho.
- por encontrares algo além de mim...
- por não me encontrar aí no olhar do outro.
- talvez estejas além, muito além...
- muito além...
- o além existe, caro amigo?
- não percebemos quando lá estamos...

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

casa nova

insônia na primeira noite. vizinhos trocam farpas rasgando o silêncio que se tenta reconhecer – o silêncio é a ausência de sons dos motores que ninam toda a trajetória da noite na rua da bahia. assusta de grande, a pausa de ruídos, vilipendiada aos berros, entre uma e outra nota, pelos gritos do casal histérico (como eu às vezes par?) pavor! sou capaz de me mudar para não ter que tolerá-lo (ao lado além e fora do corpo, no outro que grita; dentro do corpo o doentio e em mim amor). numa primeira noite isso apavora. quem já (con)viveu com desbotados rancores, entende... fora isso, um grilo engole o quase absoluto. consigo ouvir um eco de seu canto. e antes disso, no entardecer, pernilongos devoradores assaltam em dezenas, pelas janelas. mora num pomar, agora, ainda no Asfalto! laranjeiras, terceiro andar. em luto tanto quanto aliviada. o desejo de mudança, potente, exigiu um fresco lar. eleger um ponto: muitos cálculos. ponderações sobre o espaço. nostalgia antecipada pelo quarto-e-sala aonde foi perdido o medo de se ver só. cada casa oculta um trecho da travessia. um amor. ou muitas despedidas. centenas de solidões. certas opiniões. uma luz na varanda, um corpo novo estendido no lençol. fotografias embaladas em caixas velhas, sujeiras no canto da sala, geladeira vazia, miojo, banana quase podre. uma saudade do antigo lar.uma mulher de pouco caso.

dois bichos visitaram o mesmo dia. um ratinho miúdo que teve medo de ver e fugiu e um outro de linguagem, onomatopéia. um terceiro, além, na noite passada, chamado vulto, pode ser muitas coisas, mas crença é pros que projetam nascer de novo. não há lugar para as tímidas. prefere te ver nesta vida, mesmo ali na frente, na curva do sinal e do corpo já cansado. houve uma mensagem, mas todo signo já parece pequeno. o que fazer com a falta de sentido?

e agora compro mingau de milho verde, pamonhas fresquinhas, pamonhas!, pão e cebolinha na porta de casa. isso ainda existe em bh!. sou zona norte.


quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

sentimento de água. iemanjá


não consegue fazer-se desligar das palavras, mesmo aquelas que sequer querem se deixar entender, as mais banais, as mais chulas. lê um poeta novo e se entristece com a insegurança frente à austeridade do outro na forma do dizer. ou encontrou uma forma de fazê-lo tão sem defesa, tão sem nexo, tão sem verdades... pobres são os sentimentos, afronto à palavra.

de qualquer forma, rompeu com um método linear de narrativa, talvez por não querer evidenciar ou falsear um sentimento que é tanto quanto quer deixar transparecer: aberto, transitório, mutável, incompreensível. e no final pergunta-se: quem é este eu ou quem quer apresentar como sendo o eu a partir dos textos que mantém vivos, dos textos que compartilha, dos textos que relê compulsivamente num impulso eterno de reescrita, reanálise, reconstituição? no final sente o que resta: sentimentos que cria e falseia - mesmo os que geram olhar, mesmo os que geram toque, mesmo os que geram cafés, lábios e unhas -, nada fica, somente a escrita. a condição de escritora... e mesmo, como ousa dizer-se em condição de escritora? sente que o é mal, que é qualquer coisa exceto escritora, fixada no nada, como se somente o atingimento deste estado a salvasse do pavor de todo o resto. está enclausurada num quarto de espelho ou de vidro. e distante do verbo.


algo se quebrou.

e de novo relê o escrito. confirma: dá voltas em torno do rabo. deveria dialogar sobre política, sexo ou religião de forma objetiva, emitindo opiniões, citando especialistas. confessa: às vezes reproduz bem essas técnicas de escrita acadêmicas, mas mas mas. não é o caso agora.

sufoca o vazio, sufoca o não querer nada. no limite apenas ser uma andarilha com um notebook na mochila. permanecer 10 meses no mar, trabalhar uns bons anos na áfrica, praticar inglês, francês e espanhol na europa, escrever textos, grafar imagens num caderno, ler mais filósofos asiáticos. sonho pequeno burguês dos grandes!

agora está só em casa. seus amigos foram estudar possibilidades de intervenção. coletivo. esses sonhos, junto, a anima. nada resta a experimentar senão invenções de estórias,
gosto inquietante do desejo.

a arte ardendo cruel,
mas redentora.
.......................................força bruta.