terça-feira, 21 de março de 2006




Para algumas sensações falta mesmo o dizer, porque esta dimensão é própria da materialidade que há na existência e a existência quando na vivência daquela propriedade alienígena à qual chamamos amor não cabe na palavra dita. Daí é resignar-se ao beijo, ao toque, ao arrepio, à lágrima, ao vento... é deixar ser mesmo imaterial e seguir o fluxo rumo à deterioração dos limites. Ir, simplesmente, até chegar em chá de maçã com canela...




Ontem chovia e enquanto o chão escorria molhado, parecendo asfalto derretido, o céu do entardecer era de um amarelo-manga, dava vontade de chupar. Um dia assim, meio estranho, apocalíptico, preguiçoso, melancólico. Eu, dentro do ônibus, queria evitar descer para não molhar os pés, mas lá fora, na Praça da Liberdade, pés corriam no cotidiano do corpo que malha haja chuva haja sol. Meu olhar seguia distraído absorvendo relampejos de céu, de gente, de água fazendo caminhos tortos na janela e dispersando minha visão que estava para além da transparência do vidro que deixa de ser transparente na chuva – nada se vê, só pingo que vem de fora, mas que não nos molha e daí, do paredão que forma a chuva na janela, que resta senão pensar no nada, no caos do trânsito, no sinal vermelho que não quer esverdear, no homem que lá de fora de repente me enxerga e me intimida ante a possibilidade de ler meus pensamentos tortos - viro o olhar. Estou atrasada e que dia mais estúpido para se ter uma consulta de rotina! Este dia é para a poesia e não p’ra medicina. Dá vontade de entrar no Belas Artes, mas é preciso me torturar mais um pouco seguindo a seqüência desenhada – hoje estou menos anárquica – e às vezes é preciso se enquadrar para depois a queda ter gosto de gozo. Tá bom por hoje!




Não é tanto o espaço o culpado, o turbilhão, a multidão, este amontoado de sussurros e pedras e faróis, mas este tempo que não me enquadro. É noite e agora compreendo mais a feroz efervescência que pulsa do silêncio, da abstração, da solidão. A noite tornou-se um abrigo amigo, sempre piscando possibilidades múltiplas de ser mais eu, de deixar de ser eu, de desconstruir o eu, de humanizar a existência e ser algo melhor que isso. Nem sei mesmo qual a distância cruel e se é mesmo possível calcular com régua e metros e kilômetros ou somente pegando um atalho, o caminho da minhoca, para chegar ao que não-sou no espaço-tempo urbano, ao que sou para além do enquadramento social, possibilidade infinita que me desintegra, afunda, mas que re-funda, menos material e estática - ativação inovadora sobre a realidade.






percebo aos poucos esta angústia que toma o sangue, uma pancada no peito que não é própria do coração, mas da sensação, da madrugada mal dormida, da estrela acordada que eu via da janela da minha madrugada, este arrepio corporal da sombra da solidão, este estar presa ao corpo que dói porque quero estar além de mim, esta fixação à própria dor, à própria pele, sentindo lentamente a saliva que desce e engasga, porque não é possível entrar, nada, absolutamente nada, estou trancada e apenas a dor pulsa lá dentro e pior que a dor vai a certeza de ser tão pequena.





"Estou numa solidão que eu reconheço,
que dentre todas nós reconhecemos,
sem escapatória de agora em diante,
irremediável, a solidão política
."

Marguerite Duras


domingo, 19 de março de 2006




"Infinito: Mais que a maior de todas as coisas e mais um pouco. Muito maior que isso, aliás, fantasticamente imenso, de um tamanho totalmente estonteante, um verdadeiro tamanho tipo “puxa, como é grande!”. O infinito é tão grande que em comparação a ele a própria grandeza parece uma titica. Gigantesco multiplicado por colossal multiplicado por exorbitantemente enorme é o tipo de conceito a que estamos tentando chegar.
População: Nenhuma. Sabe-se que há um número infinito de mundos, simplesmente porque há um espaço infinito para que os haja. Todavia, nem todos são habitados. Assim, deve haver um número finito de mundos habitados. Qualquer número finito dividido pelo infinito é tão perto de zero que não faz diferença, de forma que a população de todos os planetas do Universo pode ser considerada igual a zero. Daí segue que a população de todo o Universo também é zero, e que quaisquer pessoas que você possa encontrar de vez em quando são meramente produtos de uma imaginação perturbada."
(O restaurante do fim do universo - Douglas Adams)


domingo, 12 de março de 2006





Sei lá a qual dia pertence a noite... A noite não pertence a um dia de feira. A noite é um intervalo no tempo humano.




sexta-feira, 10 de março de 2006




Estou no centro de Guarapari. Na rua limite do oceano o carnaval passa pelos corpos. São muitos, coloridos e na mesma direção. Pulam e sorriem continuamente, num êxtase paradisíaco que terminará na quarta-feira de cinzas. Sem conseguir fixar esta felicidade com data e hora marcada, sigo mesmo com minhas sensações e reflexões cotidianas e atemporais, brandas e às vezes melancólicas que não se enquadram na orla carnavalesca.

Conhecer uma cidade... andar por suas ruas e ir aos poucos a re-conhecendo: pequeninos trechos, becos, vielas, casebres... a árvore que floriu, a outra que foi amputada, o horizonte de uma determinada perspectiva, a praia de um certo ângulo, o crespúsculo daquela pedra específica, o reflexo de luzes de uma certa janela num ponto do mar... Para conhecer é preciso reviver, criar história, perceber as mutações, saudar o reencontro. O que há de trágico no turismo é que ele não cria laços do ser com o espaço, que é usado numa relação de custo-benefício, de explorador e explorado. Não há retorno nem lembraça do mesmo cheiro, da mesma sombra, da mesma pedra. Somam-se lugares como colecionando figurinhas, deixando para a máquina fotográfica a memória que caberia a si.

Guarapari causou-me aquela sensação leve das paixões inesperadas... aquele torpor suave por não exigir dela nenhuma visão espetacular, por sabê-la equivocamente desinteressante. E assim, com a gratuidade exalando da nossa relação, ela entrou suave, amiga.

A Praia das Virtudes tem o aconchego do quintal de casa, tão minúscula e aglutinadora. Pequeno triângulo composto de prédios nas diagonais, com pracinha ao centro e mar na base. Enseada fechada por pedras que emolduram o azul que segue pequeno e vai se abrindo aos poucos até ser só azul, tudo azul, demais azul e é preciso dançar com olhos em busca de outras cores para que não seja diluída inteira num balde de tinta.

Da Praia das Virtudes seguir pela Rua da Prainha até o cemitério velho. Ali ao lado, as casinhas nostálgicas da rua Francisco de Almeida parecem saídas de livros de estórias infantis. Ao fundo, paredões de janelas causam um contraste futurista perturbador. Ao centro, perdido entre o passado e o futuro, aquele monte de túmulo colorido, com flores alegres e outras murchas, cruzes tortas, azulejos coloridos, cachorros vira-latas, terra vermelha, preta, mexida, piscina de mortos, jazigo dos 'fundadores' de Guara-pari.

Dali, subir a Ladeira Salvador Silva e se deparar com a pracinha da primeira igreja, datada de 1585, garantindo assim a temporalidade medieval e portuguesa tão caracteristica das cidades históricas do Brasil. A praça quase convida-nos a vir morar ali, numa daquelas casas com varandas largas, muros baixos, acesso quase irrestrito, sugerindo uma vida urbana menos murada e familiar, mais comunitária e ruaceira.

Depois de alguns dias ouvindo o mar dia e noite num som tal chuva de temporal, voltar para o dia-a-dia da Praça Sete, vigésimo primeiro andar. Trocar o horizonte em linha reta pelos contornos montanhosos da Serra do Curral, recebendo por sugestão o pôr do sol refletido nas janelas que sobem a Avenida Afonso Pena.
Hora de voltar às Minas Gerais...

Espírito Santo, amém!


quarta-feira, 8 de março de 2006


Da Praça da Liberdade à Praça Sete... De cara deparar-me com profetas esperneantes com bíblias quase engolidas ante o delírio da profecia, filas de aposentados nas portas dos bancos, pedintes com perdas estendidas nas calçadas, engraxates, artistas de rua fazendo-nos rir... gente, gente, gente, gente... multidão de anônimos, assim como eu.
De onde estou, é pular do 21º andar e ser fincada na ponta do obelisco! Vejo a Serra do Curral, a favela do Palmital, formigas no caos do trânsito, buzinas enlouquecedoras num constante pampampam de desmiolar o cérebro, prédios e, faça-se justiça, também um pouco de céu e de nuvens para aliviar a alma...
No final da tarde já não é mais possível ver diretamente o pôr do sol como era na Praça da Liberdade. Hoje, contudo, percebi uma vermelhidão sob a vidraça das dezenas de prédios que sobem a Avenida Afonso Pena. O sol se punha atrás do prédio e eu assistia de forma refletida nas vidraças. O bom de uma experiência é ser capaz de vivenciá-la posteriormente apenas por intuição e senti-la vigorosamente! Do caos urbano, a visão subentendida do horizonte solar...





Acho estúpida, às vezes, minha postura diante da realidade. Retraída, insegura. Faz-me lembrar Pessoa em Desassossego, mas quem me dera tão poética e genial... O cotidiano é alienante, irreal, ameaçador. É preciso poesia e loucura para sobreviver à bestialidade de cada dia.




E o que importa o número no espaço? No tempo? O número é sempre a tentativa de retenção da existência, a apropriação (vã ambição) da microcóspica e invisível percepção da passagem (qual passagem? por onde? em direção a quê?)




A linguagem nos molha com palavras. 
E depois, florir...





A angústia de saber-me pouca para as dores do mundo provoca-me um grito, de início mudo, mas que reclama palavra. “A angústia metafísica ou existencial é apenas um epifenômeno que traduz na esfera afetiva um problema lingüístico profundo”. (Wittgenstein)