sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

deitada na madeira fria




Suzana,

 
Inicio esta carta antes refletindo se não deveria deixá-la esperar por alguns meses, para talvez fazê-la experimentar o tempo como eu o fiz, ao sabor acerbo da erva espera. Crueldade, minha cara, crueldade manter-me assim perdido sem notícias suas e quando estas chegam preciso abrir as janelas para fazê-la respirar um ar menos ácido de ressentimentos. Deixo a carta sobre a mesa enquanto ainda tento findar o café da manhã interrompido. Sabia que era você ao avistar o carteiro pois não há quem ainda me poste cartas e quase já acreditava que mesmo você não mais o faria. Eis que aí está, deitada na madeira fria, inspirando o aroma do café por tantas e tantas manhãs compartilhado contigo. Aceita uma xícara? E desculpe-me a bagunça da casa, não esperava por ti neste início de dia. Ouço Ry Cooder, “Paris, Texas”. Qualquer aparência é mesmo proposital. 

Da janela, Suzana, que abri para recebê-la avisto a copa da nossa árvore, lembra? Depois que partiu me neguei a sentar-me à sua sombra, mas agora contigo em minhas mãos penso em ir ler ali, o que de imediato me agrada. Então coloco um short, troco os chinelos e caminhamos de mãos dadas rumo à praça. Falo de dentro de uma manhã calma de outono. A rua está quieta, posto que quase todos foram para o trabalho. Poucos vagabundos, como eu, se mantêm em casa, outros desempregados e mulheres que às vezes passam com suas pequenas crias. Acaba de cruzar-me Dona Teresinha, que sorri e pergunta por ti, digo que tenho uma carta sua em mãos, ela te manda um beijo e segue arrastando sua bunda enorme vestida com uma bermuda vermelha, parece um besouro gordo com as nádegas acesas.

Ao ler suas palavras tenho uma felicidade egoísta, penso que talvez você não suportará por muito tempo e voltará a viver aqui, comigo. Compartilho esta idéia para que desde já se arme contra o meu niilismo. No fundo sempre soube que as suas sensações sobre a metrópole seriam exatamente estas e com ainda mais certeza sei que jamais voltará para a nossa pequenina cidade, tão tola e jovem é ainda para agir de forma coerente à compreensão que já obteve em gotas insignificantes do tempo. Só intuo e temo o seu completo distanciamento.

Talvez queira saber um pouco de mim, apesar de não me ter provocado nesta direção, mas aproveito a oportunidade das ondas para desviar um pouco o curso do rio. A sua partida, não pensei que a sentiria tanto, mas um vazio abriu-se abaixo dos meus pés e foi preciso muita energia para sustentar-me. A nossa singela amizade me devolveu uma certa luz e me senti novamente no escuro após a sua retirada. Sei que o seu silêncio foi estratégico para fazer-me perceber esta ruptura como definitiva. Agora, somente, volto a respirar e há nisso um sentido novo – talvez eu nunca mais a veja e esta perspectiva me liberta e me aprisiona. A sua amizade, Suzana, bem sabes, bem sabes...

Em mim o problema da próstata se agrava. Aos poucos vou temendo e me preparando para o pior, se vier. Talvez uma cirurgia dê conta de me manter vivo para mais além, mas quando se chega aos cinquenta qualquer arranhão na pele ameaça e faz voltarem as infinitas divagações sobre a falta de sentido que há em tudo e para estes momentos de angústia não existem bares, cafés, livrarias, apenas uma solidão que abarca o mundo e me remete para a possibilidade de deixar de ser. Sinto-me um velho Kafka, minha cara amiga, escondido do mundo e querendo queimar todas as minhas palavras.

Penso como tem feito para sobreviver aí, pois nada falou sobre isso. A sua tia conseguiu empregá-la? Conseguiu matricular-se no curso? Deixa-me preocupado. Caso necessite de ajuda posso compartilhar esta miserável aposentadoria de inválido contigo, não seja prepotente. Fui atrás de notícias suas, mas Adriana nada soube me dizer e se mostrou áspera, também aflita com o seu alheamento.  Entendo querer desvencilhar-se de tudo e todos, mas Adriana, como eu, pensava não fazer parte deste universo de que você se destitui. Ela estava bonita, quis beijá-la, quis trazê-la para a minha cama, mas me contive pensando em ti.

Minha vida, caríssima, vai como nuvens, como vês. Tenho uma nova amiga para brincar um pouco vez por outra, o que me faz esquecer de mim e ainda perceber-me alegre como um cão alienado. Dela escrevo em breve, quando voltar a me visitar. Não será desta vez, que o sol já levou a sombra para o meio da rua e por lá, por mais doido que já esteja, não ouso sentar por ainda querer viver.

Espero chegar até você em poucos dias e encontrá-la feliz. Aguardarei o carteiro a cada dia, só assim ainda me resta um pouco de riqueza em perceber o tempo. Apesar deste corpo de homem, minha querida, há muito desisti de sê-lo. Uma flor nascida num asteróide distante, eis o que sou. 

Nossa correspondência, que já faz aniversário, me aproxima ao Visconde de Valmont escrevendo à sua Marquesa de Merteuil, relação menos perigosa, a nossa, mas a esta altura tive que recorrer ao mestre Laclos porque ele diz melhor parte do que penso expressar neste pequeno pedaço de papel. Verá que cabe citá-lo e me perdoará a pouca originalidade em escrever eu mesmo o que penso. Concordarás que não poderia dizer o mesmo em melhor forma. 

"Conhecer-vos sem vos amar, amar-vos sem ser constante, são coisas igualmente impossíveis; e, apesar da modéstia que vos adorna, deve ser-vos mais fácil lastimardes os sentimentos que inspirais do que vos surpreenderdes com eles. Quanto a mim, cujo único mérito foi o de vos apreciar, não os quero perder; e, longe de consentir em vossos insidiosos oferecimentos, renovo a vossos pés o juramento de vos amar sempre.”

 

Um comentário:

Renato Torres disse...

Fabi,

as juras de amor são confirmações daquilo que já é, sem necessitar delas. talvez o grande segredo se encontre mesmo no silêncio, esse que sabe ser, nos interstícios, a verdadeira pureza de intenções transbordadas no olhar, em pequenos gestos, na clareza e na calma de atitudes limpas. chegaremos a conhecer tal dádiva, humanamente? depende apenas de nós...

um beijo,

r