quarta-feira, 17 de agosto de 2011

primeiras notas para um quase conto



o homem está lá. ela o vê e o seu meio sorriso silencioso a confunde. não trocam palavras, mas zanzam pelo ambiente sentindo o corpo do outro. às vezes os olhos se encontram pelo segundo necessário ao reconhecimento. instala-se uma pausa e no instante imediato volta a pulsão comum dos ritmos e das formas. cada qual ao próprio ser. ele toma o seu lugar na noite. com a intimidade de um menino que desde os primeiros anos conhece a direção dos ventos, senta-se no banco com o corpo ereto e possui o instrumento com a lentidão de quem cuida do silêncio. instala o violoncelo dentre as pernas e impõe os dedos nas cordas com a cabeça ligeiramente inclinada para ouvir o primeiro som nascer, como as primeiras luzes do amanhecer que somente a poucos se anuncia. sorri para uma amiga à mesa. parece um pouco tímido. emite o segundo som, pausa, emite o terceiro e se mantém um pouco mais nele. enfim a música. o homem toma cada canto das cordas como quem já vasculhou cada palmo de moradia das notas. enquanto toca somente em momentos raros estende o olhar ao redor e o retém em certos pontos no espaço, para voltar imediatamente a pousá-lo no peito, onde labuta com os braços em asas. a cada intervalo, aplausos e silêncio. ele não fala nada. é um pássaro. não há lembrança das primeiras frases, como não das segundas e terceiras. há um silêncio instaurado e alongado até lá si dó, onde talvez devesse a conversa já ter construído os mais bem fundados ditos. ali ainda repousa um vazio que utiliza de pequenos gestos. desconcerto de braços, sons monossilábicos, possibilidades múltiplas de significados. ela despede-se quando já a noite a fura. o pensamento trilhando perdido pela imensidão do desejo, pulsando por entendimento. não há tempo para entendimento. tem agora um caos que custa a se manter firme dentro. treme ao pensar. não é capaz de dizê-lo, com medo de que atropele o mundo, extrapole a carne e se imponha. precisa ainda caminhar de pé, não cair até que possa cair. há antes disso, antes de tudo, uma vaga lembrança apenas, de um precipício. sabia do poder da retina, do choque causado pela visão, do potencial de fogo de uma sequência acolhida pelos olhos, da dialética e do irreversível dos acontecimentos, queda abissal. preguiça de ter a vida inteira novamente sacudida, preguiça. mas tudo era ato inconsciente da desarrumação necessária. vontade pelo inusitado do mundo para além de si.       


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