terça-feira, 8 de março de 2011

CONTO FEITO A DUAS MÃOS.


- Dê-me o tom – pediu ele, estirado no sofá.

Era já tarde, mas ainda sequer o almoço. Café com pizza de noite anterior, alguns livros folheados, conversas e sofá.

- Não, dê você, o início é sempre mais complicado.

Ele tomou o violão, dedilhou as primeiras notas: blam, blam. Assobiou. Cantarolou uma espécie de samba-canção, desafinado, enfadado...

- Pronto. Agora é com você. Isso tem tudo haver com você. Acho que isso tem tudo haver com você, mesmo. Acho mesmo.

- Sim, mas queria um outro ritmo, mais lento, meio bossa-nova, vá, diminua um pouco este batimento, e sua voz, põe ela mais suave.

- Ah, a minha voz não tem jeito.

Outros três blans, blans, blans. E a canção solfejada começou. Enquanto ele tocava, Clara já compunha na cabeça uma estória de moça na janela e rapazes na madrugada. Nada que evocasse o barquinho-vai do velho Rio, mas, no fundo com a mesma atmosfera de noite quente, disponibilidade e desaviso daqueles tempos. Clara vagava numa vaga idéia de felicidade fresca, como só se sabe na infância e no começo de quando se namora.

- O quê você acha? – Clara sussurrou o texto.

- Acho que não estamos no mesmo espírito, talvez... Ele lhe passou o violão. – Toca um pouco, põe aí uma melodia, está bonita a letra, acho mesmo que dá música, mas faz aí, vou pegar uma bebida. Ele saiu da sala, deixando Clara sentada no tapete.

- Ei, volta, vai, eu quero a sua voz, não a minha.

A canção ficou pronta em minutos. Quando ele voltou, depois de longo itinerário entre a cozinha e o quintal, o quintal dos cachorros e o quarto, o quarto e a cozinha, encontrou folhas de papel com a letra miúda de Clara sobre o tapete, Clara com um riso bobo e as pernas cruzadas, o vestido entre as coxas, a dizer:

- Sente-se, grandão, escute.

Ela mudou num segundo a voz, indo buscar um tom quase sussurrado, lento, arrastado, quase mudo. Ele se aproximou, se sentou também no tapete para ouvir a voz e vê-la entre dedilhados, sorriu, sempre achava engraçado como aquela pequena mão percorria as linhas, meio desengonçada, esticando os dedos para tocar um sol.

- Uma bela canção – disse – bela canção – o olhar dele perdeu-se num ponto imediatamente anterior às flores do vestido de Clara e ali ficou uns instantes – Penso que quando a gente se perde na música é porque ela deu certo. A música, acho, tem esta função de nos tirar daqui. Não sei, não sei se é assim, mas que ela nos atira para algum lugar que não é aqui, isso sim, acho que sim, eu sei.

Clara pousou o violão ao lado da sua perna esquerda, deixando escapar, sem querer deixar perceber, um sorriso feliz, enquanto sua cabeça tendia para o chão onde ia abrigar-se o instrumento. Levantou-se repentinamente. Ele também. Os dois seguiram pelo corredor extenso, ele cantarolando a canção nova enquanto ela arrancava as flores que lhe cobriam a pele.


Nenhum comentário: