segunda-feira, 15 de novembro de 2010

romance da experiência densa


Quando dobra a rua, um odor ocre paira, de onde é possível extrair um certo adocicado típico das madeiras. O homem inspira mais demoradamente o ar, tentando reconhecer a essência antes de abrir os olhos, e confirma a presença de um baú todo talhado à mão, exposto às primeiras gotas de uma tempestade anunciada. O cheiro, ele o reconhece sempre quando da evaporação das primeiras gotas do suor de uma árvore seca queimada de sol. Ele detém a caminhada e mais uma vez se permite o sentido, prolongando o êxtase. Segue adiante, mas recua o passo, procurando o dono do objeto esquecido. É uma rua residencial, deserta. Ele se posiciona perto do móvel, esperando que alguém venha cobrar propriedade. O céu ameaça com uma rajada de trovão, o personagem abre o guarda chuva preto e tenta proteger, mais ao bem encontrado do que ao próprio corpo. Ninguém aparece. Ele se senta no baú, já defendendo a descoberta. Se permanecer por um tempo razoável poderá requerer o direito à posse, segundo as leis canônicas. Um cachorro vira lata o encara de dentro de uma casa, com o focinho espremido no portão de ferro. Seu ódio aos cachorros tornou-se compaixão desde que ouvira as sábias ponderações de Deleuse sobre tais bichos domáveis. Talvez tenha permanecido assim uns vinte minutos, recebendo as poças de chuva dos raros carros que por ali fizeram percurso em velocidade, depois se convence dos seus direitos e tenta levantar a caixa para conduzi-la consigo, porém o peso acusa existir algo dentro, trancado por um cadeado. Tenta levantá-lo mais uma vez, com alguma dificuldade suspende o retângulo e o dispõe sobre os ombros com a testemunha latindo do outro lado. A chuva já molhou todo o corpo e ele tenta avançar mais apressadamente, a pensão não está longe, basta caminhar até o fim da rua, seguir a primeira à direita por dois quarteirões e atravessar a praça. Com alguma dificuldade ele consegue conduzir o objeto pelo fino corredor repleto de portas aonde uma mulher desconhecida, certamente hóspede nova, fuma encostada no caixonete do único acesso aberto, encarando-o quando a transpõe. O homem a cumprimenta com um silencioso aceno de pescoço, ela responde com um sussurro, ele abaixa a cabeça e continua, causando um barulho estrondoso ao deixar o conteúdo das mãos cair. Ele acaba de conduzir o baú ao quardo arrastando-o e imediatamente após deixá-lo num canto, sai à procura de algo para abrir o cadeado, de maneira a não ferir o bem mais precioso - o sândalo bordado. A moça desconhecida o detém, pede uma informação, é nova na cidade. Ele não resiste e a conduz ao Hospital Geral. A pensão sempre guarda familiares de doentes devido à proximidade com a região hospitalar e ele sempre se rende às histórias que ouve, talvez por ser sozinho nesse mundo. Ela precisa visitar o noivo que sofreu uma cirurgia complicada nessa mesma tarde. Ambos tentam se respeitar debaixo do guarda-chuva estreito, porque ela não possui um, mas é possivel sentir um do outro a pele eriçada do frio. O baú pode esperar.

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