sexta-feira, 4 de novembro de 2011

O CORREDOR DA MORTE


 
"Auto-ajuda não, que isso não é para o meu bico. Mas talvez hetero-ajuda, essa que se constitui na alteridade, não no ganho e apropriação mas no jogo e mistério identitário"

Enquanto Drummond é lembrado por dias com suas poesias aparecendo a cada hora nas redes sociais, tornando menores as pedras, outro homem toma a minha recordação, o biógrafo do poeta, que conheci em carne e osso num corredor de hospital quando ainda lutava para fazer seu novo coração transplantado aceita-lo como casa.
No dia que conheci José Maria Cançado eu havia recebido a confirmação do câncer da minha mãe e me sentia oprimida diante da possibilidade da sua morte e das dores que sabia ter que enfrentar ao seu lado, sem fraquejar. Obviamente fraquejei várias vezes no percurso. Como poderia eu enfrentar um desconhecido tão poderoso? O que sabia era ter que adiar em mim a manifestação da dor, para exercer o Cuidado. O que sentia ali parecia menos importante do que deveria externar. Mas isso tudo sucumbia à vontade de chorar, ao sentimento de revolta e ao pavor diante da morte, que se manifestava como possibilidade latente no corpo de um outro amado. A morte continua inconcebível, porque não é o que sentimos com a finitude de um outro e nunca será registrada como experiência inteligível por aquele que a vivencia, porque o eu deixa de ser no momento em que ela é.
Eu trazia o diagnóstico na bolsa e ainda tentava me acalmar do choque primeiro da anunciação, quando o meu companheiro recebeu um telefonema. O seu sobrinho havia quebrado a perna e seria imediatamente submetido a uma cirurgia. Fomos visitá-lo no Felício Rocho e com isso eu adiava por algumas horas o reencontro com dona Marlene, que me aguardava em casa como mensageira. Seguir com o meu namorado para o hospital era suspender o encontro com a dor ou buscar um atalho que me redimisse com a coragem. A caminho do quarto, os infindáveis passos pelo vazio do hospital me pareciam inaugurar um longo percurso através do corredor da morte.
Eis que surge o poeta, que eu sequer conhecia, pequenino, na outra ponta do grande túnel, vestido em túnica branca. Ele não parecia doente. Doente parecia eu, calada, amedrontada, com a palavra câncer devorando tudo. O poeta fala dos anos vividos em quartos de hospitais, das cirurgias incansáveis, dos tubos, das enfermeiras. O ouço dizer que não teria sobrevivido, não fosse o SUS. Fala do seu livro, “O transplante é um baião-de-dois”, que ele compôs ali mesmo, no confronto com a experiência.
Anos depois li seu baião de dois, alguns versos declamados no corredor. Um Dom Quixote caído de um campo de batalha desconhecido, tentando me convencer a encarar a árdua luta a que fui convocada, sem meios de poder recuar.
"Pois o que se entreouve aqui
nesse leito, velha UTI, lugar donde estoy,
normativo não é. É a ponderação
misteriosa, e que é assim
com relação ao que longamente já é
e com relação ao que longamente não foi.

Espero. Minha condição agora é pastoral."



E quem falou que não é
também esta condição
a nossa?
Por isso
vou escrever sobre tudo
o que aperta o peito,
de uma vez só,
porque como em Maiakovski,
a anatomia em mim
ficou louca
e sou toda hoje.
 
 
ps. os versos em itálico são de Cançado em seu O transplante é um baião de dois. Vale a pena ler, pois a quem escapa o corredor?
 
 

Um comentário:

Renato Torres disse...

Fabiana,

confesso que ainda não tinha vindo ao seu blog, e (shame on me!) nem mesmo tinha respondido ainda à sua visita na Página Branca... disseste, sucinta, que tinhas gostado, e que voltarias - o que não sei se já fizeste. de todo modo, vir até aqui me deu muito mais do que podia supor com aquela tua breve visita... me deu imagens e reflexos maravilhosos sobre vida e morte, sobre brevidades, circunstâncias, perenidades e epifanias possíveis diante da adversidade. de fato, a morte nos aproxima do sublime, apenas por existir, por ser uma realidade, a única certeza que temos. acredito em diversas epifanias, inclusive na que implica em continuarmos sendo - ou talvez sermos completamente, largamente! - com o advento da morte... mas, é claro, tudo isso são hipóteses de fumaça, eu nada sei. mas sei que gostei de ti, e daqui.

abraços,

r

ps: se voltares à Branca, te ofereço a Beleza Verdadeira