quinta-feira, 1 de abril de 2010

Dia da mentira





É impossível a qualquer um pensar já conhecer suficientemente a sua própria geografia sem percorrer as ruas mais estreitas, fugir às grandes veias e adentrar as ínfimas vias; sem eleger a menor das portas, qualquer uma daquelas que vá se estender em outras tantas.

Uma porta de madeira velha range e se abre para um pequeno cômodo, na presença do sol; há lençois pendurados separando os quartos, a cozinha e o banheiro, da sala, que abriga um sofá já velho de vermelho desbotado, uma mesa de compensado carcomida por cupins e uma estante repleta de pequenas tralhas.

Uma velha senhora, sozinha, sentada num banco de madeira com o braço escorado no fogão de lenha, sustenta o queixo enquanto contempla os olhares envidraçados das largas vias que buscam rapidamente daquelas margens cinzas escapar. Cabe considerável conjectura aquilo que de fato pode ocorrer. A senhora ouve o trepidar do fogo aceso e futuca a chama com um dos galhos estendido na superfície de barro.

A existência da velha senhora, dentro da velha casa, escondida no subterrâneo espaço, parece ser um lugar para, depois de superado o medo inicial, poder acalmar-se numa xícara de chá? O que virá depois? Você não entende como chegou até ali e quem pode vir a ser este ser que te acolhe em silêncio.

Ela te diz para não temer, mas também ela teme e clama pela sua menina. Ela veste um vestido simples, cinza, com estampa floral e usa sandálias abertas nos pés; tem os pés calejados, as mãos gordas e o olhar sereno. Enquanto ela remexe o fogo você observa um pássaro se formar na chama e sumir rapidamente ao bater das asas.

Coma um bolinho, ela diz. Você come. Coma outro. Você come. Tome um gole de chá. Chá de folha? Não gosto. Mas esse eu ranquei do xaxim. Você toma. Você se senta. O que você faz ali? Quem é esta mulher? Um estrondo. O pavor te toma, uma porta se fecha, suas pálpebras, e um túnel se abre.

Uma grande via te absorve. Você está dentro de um carro, agora, e de olhar envidraçado avista o barraco da velha senhora. Ela continua lá dentro mexendo o fogo, te olha enigmática e sai pela porta do fundo, uma via que talvez se revelasse para você logo em seguida. Mas logo em seguida não ha mais para você, ali.

Você se afoga na larga avenida, de volta ao confortável centro, despejada no fluxo. Na esquina uma menina segura uma pedra, talvez seja a filha da velha senhora. Você pensa em parar, recuar e buscar entender, mas a velocidade deixa escapar o desejo e te faz seguir em frente. A velha geografia se abre, aquela que você pensa seguramente habitar.

O fogo, a senhora, a menina, todos os becos e portas passam a compor apenas um campo onírico ou um tempo pretérito. O dia de hoje será o dia da mentira porque já não existe mais. Apagar o fogo e molhar a brasa.

Mas o chá era saboroso. E também o olhar da velha senhora. 



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