quarta-feira, 27 de janeiro de 2010



só para loucos!,
(como o tratado do lobo da estepe)

fade in.
a luz do corredor está acesa, barulho de chuveiro e concentração de ar quente saindo do banheiro marcam passagem do tempo. ele sai do banheiro. voz em off: “ e diz preocupar-se com o mundo, quer que todo mundo pense bem de você, que todo mundo pense oh, ele é bacana, é inteligente, é politikamentecorreto!” corta para quarto, ele entra no quarto, bagunça na cama. som de egsberto gismonti no computador ligado em cima da cama. voz em off, “esse cara é bom mesmo, hein? eu não conhecia. (tom de chacote) ignorante, você...” folheia o que tem na escrivaninha para ler. plano detalhe de piauí e le monde. voz em off, com sarcasmo: “companhias de quarto de hotel... oh, inteligente, você!”, cara de tédio, larga as revistas e pega o computador, o corpo ainda embrulhado em toalhas. voz em off: “se quer tornar-se roteirista, menos cursos. escreva escreva escreva. esse egsberto, puxa vida – quero dançar isso.” aumenta o som. plano detalhe dos pés. voz em off. “um teorema não pode ser desfeito. mas klimt envolvia o corpo das mulheres com tinta. e hundertwasser jogava aquilo que klimt pintava na arquitetura que ele criava. magnífica, a sua arquitetura, magnífica. queria poder jogar isso nas paredes de todas as ruas. pós muro... fim da história... raio que o parta! se você fala só o português, vai mal, mas pelo menos leia também o que escrevem em portugal... se você fala espanhol, que bom, o mundo hispânico se abriu para você... agora se você fala o inglês, ah sim, aí você chegou ao infinito. puts, eu tô lascado com o meu tupiniquim. ok, ok apago a luz do corredor.” pára de dançar, caminha até o corredor e apaga a luz. fade out, tela negra. legenda: “aborto de personagem”. tela negra, voz em off do personagem. “mas peraí, o personagem já nasceu, ele tem direito de viver.” legenda: direito de viver? ponto de vista do personagem: plano detalhe – ele grita: “eu já nasci?...” legenda em tela negra: “ter um parto natural não é algo fácil.”

créditos:

roteiro é literatura?
não, roteiro não é literatura.
dramaturgia é literatura?
não, dramaturgia não é literatura.
shakespeare é o que, então?

fade out.
plano geral de são paulo debaixo de água.
 
 



 

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

(ibirapuera, sp)


Dias depois da noite-pesadelo, acharam o carro do meu amigo. Quem achou? Um outro seu amigo. Incrível as charadas do acaso a fazer-nos rir e respirar, como a Alice no Mundo das Maravilhas. Há dias não pensava outro pensamento, sonhos cruéis, com direito a metralhadora. Não resisti e comprei Arent, como quem busca através do conhecimento domar a impotência (vã jornada...). “Sobre a violência” é o título da sua obra, “a violência, no entanto, só tem sentido quando é uma reação e tem medida, como no caso da legítima defesa. Perde sua razão de ser quando se transforma numa estratégia ‘erga omnes’, ou seja, quando se racionaliza e se converte em princípio de ação”, mas comprei também Dom Quixote de La Mancha. Já é tempo, “desocupado leitor”, de ler Cervantes e apresentar-me a Sancho Pança, espero poder ser para ele personagem importante nesta nossa longa jornada. Os dias de São Paulo vão chegando ao fim. Sinto-me cansada de estar em túneis. E tenho pensado em alçar novos vôos, como se nada muito houvesse de sentido nesta breve escalada se não abrir os olhos em novos horizontes, deixando o Belo das Gerais, já conhecido, descansar. Cidades como esta que agora abriga meu pequeno ser tornam-me ainda mais introspectiva, sombria, melancólica. Não, não percorri a dita noite maravilhosa. Perdi o melhor, dirão. Sou das madrugadas solitárias, em quartos baratos e computador ligado, com música e álcool capaz de fazer-me escrever. Só. Vez ou outra, de tão rara quase nula, esparramo-me nas “baladas”, e destas poucas vezes, a cada cinco, talvez, em quatro mantenho-me estranha, ao canto, como olhar, apenas, a observar os corpos, os sons, os vultos, as fumaças. Por fim, na única que me sobra, creio saber degustar bem o tal sentido da palavra felicidade, me dissolvo inteira, danço, deixo-me olhar e seduzir, bebo, canto e transpiro, como uma mulher parece-nos ser ao perder o salto de cinderela. Não sei ainda o que induz ao movimento. Qual busca funda os passos e de qual raiz brota o princípio do desejo? É como se o princípio fosse secundário; como se a causa, necessária não fosse, apenas o ato em si, de ver-se em constante crise, capaz de levantar os pés e fazer colher novos passos. Passos novos ou eternamente retornados, sabe-se lá... Mas o que estranhamente é possível somar de toda essa subtração de dias é que, mesmo à exaustão cansado o corpo, há energia que empurra. Não necessariamente para frente, porque qual é mesmo o ponto-referência? O corpo se move. E quer ver o novo. E isso é tudo.




domingo, 24 de janeiro de 2010

Continuo sem entender muito. E os dias somente parecem acumular mais peças deste estranho quebra-cabeça. Não tenho conseguido unir muitas delas. Há uma montanha de elementos aleatórios, um complexo sem unidade. Uma cidade-multidão se descortina com sua minhoca de ferro por dentro da terra. Estamos dentro da sua estrutura, talvez tenhamos sido transformados em aço, respirando sua umidade de fungos e ouvindo o seu assovio ácido enquanto recebemos mais notícias amargas sobre a violência, que acaba de atingir um amigo. Saramago não traduz melhor o que se passa, apenas torna-se um companheiro neste estranho caminhar. Tentamos compreender o que parece sem razão, como Caim, andarilho no velho mundo, buscando alguma lógica dentro do absurdo – conclui não haver. Ouço a voz de um amigo do outro lado da linha. A morte das centenas de meninos das favelas no Brasil é real, assim como a morte dos haitianos, porém ainda não tão tangível como aquela que toca o corpo de um ser em nós vivo pela força da afetividade. E a retórica some. Ainda ontem folheei Arendt numa estante e optei por não lê-la, na ilusão de estar em férias da violência. Antes disso Haiti já havia interrompido nosso sabat como óculos a descortinar não apenas o que há de anunciação para as catástrofes naturais por vir, mas como extrema miséria da humanidade inteira – não como exceção, mas como permanente realidade entre nós. Hoje, novamente, uma gotinha de sangue cai no colo. E quando ela aparece, na sua verdade de pele nua e crua, nada vem de Saramago, de Arendt, de Baratta, de Foucault, de Karam, de Soares a tornar mais fácil o percurso. A dor vence. O vazio. O silêncio. Apenas permanece uma vontade de abraçar e acolher o frágil corpo humano vilipendiado. O que será feito de tu, Caim, quando findar seu eterno percurso e suas coerentes indagações? E por que ainda esta sede de viver e escrever e fazer cinema e amar e viajar e correr e parar respirar sorrir e viver? E esta absurda e concreta força para querer poder contribuir para transformar o mundo, a cada dia, nos pequenos e necessários atos, buscando em Drummond o Tumulto capaz de escrever na pedra o que deve sobreviver e fazer-nos respirar.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010



há vulto de um ser morador do lado oposto da rua, numa janela em contra-plano, como figura de fundo, imagem objeto, alter-ego de uma mulher sozinha que olha, espia, reflete, finge não ver. janela indiscreta. busca por um abrigo barato. aqui, a tudo chamam hotel, mesmo àqueles quartos que gemem no meio da enchente. e uma linha deserta a compor. tentativas de adaptação. enfim, estar presa num quarto impessoal de teto alto, de guarda roupa velho e álcool no frigobar. perder-se em anhangabaú, tentar se encontrar na liberdade, refletir as cores do que deve pulsar dentro, numa calçada repleta de corpos sujos de mendicantes e noiados. ilusão enobrecedora da escritura feliz. olhar a linha reta da são joão e procurar pela ipiranga. respirar a densidade do extra-texto. sonho da composição ideal que tome a forma de imagem. a busca por multidão. o que quer, moça? em que ainda acredita quando escreve e quer impor um texto seco a personagens quaisquer, que tomem a forma de boca, que tomem a forma de pulso, que tornem-se cor? a trajetória da cor, a trajetória da luz, a trajetória do texto é o lugar aonde os fracos não têm vez. stalker. um estranho no ninho. qual é o referencial das convenções? o que é um sonho ruim? camadas sonoras, sons específicos, objetos que ajudem a narrar sussurram o plano detalhe, o tom, o ritmo, a pulsação, o insite. dispositivo. forma. mas o personagem é apenas um estado, uma trajetória de estados, uma função da ação. síntese. ela precisa de um escalímetro capaz de medir o tamanho da saudade. e a infinidade de sonhos. sabe-se apenas que o ano novo já adentrou por esta janela. ela já deveria ter-se tornado outra, mas ainda se sente a mesma. 22:54. e se chover demais? tenho fome. um sanduíche de pão de sal com queijo, tomates, azeite e orégano substitui perfeitamente a pizza. mas nada faz cessar a saudade. estar viva é bom, neste fim de dia. (a saudade não é apenas falta. é combustível. tanto quanto queima, faz caminhar.)